Teatro

Uma história de vida é, em geral, uma trajetória profusa em ramais interrompidos: meandros cuja relevância pode esmaecer com o tempo ou mesmo desaparecer da nossa memória e das reminiscências que legamos àqueles com quem convivemos. Vladimir Herzog estudou Filosofia, mas ganhou notoriedade, na vida e na morte, como jornalista. Somente em círculos mais restritos, de familiares e amigos, suas realizações cinematográficas e outros projetos nunca concluídos na área foram conhecidos ou tiveram alguma repercussão, e só uma pesquisa aprofundada no seu espólio pôde desvelar um Vlado fotógrafo materializado nas cerca de mil fotografias que fez da família, de lugares turísticos e de pesquisas de campo. Mas, entre as facetas menos exploradas e manifestas desse homem múltiplo, vem soar de maneira algo insólita e imprevista a notícia de sua performance juvenil como ator de teatro....

Uma história de vida é, em geral, uma trajetória profusa em ramais interrompidos: meandros cuja relevância pode esmaecer com o tempo ou mesmo desaparecer da nossa memória e das reminiscências que legamos àqueles com quem convivemos. Vladimir Herzog estudou Filosofia, mas ganhou notoriedade, na vida e na morte, como jornalista. Somente em círculos mais restritos, de familiares e amigos, suas realizações cinematográficas e outros projetos nunca concluídos na área foram conhecidos ou tiveram alguma repercussão, e só uma pesquisa aprofundada no seu espólio pôde desvelar um Vlado fotógrafo materializado nas cerca de mil fotografias que fez da família, de lugares turísticos e de pesquisas de campo. Mas, entre as facetas menos exploradas e manifestas desse homem múltiplo, vem soar de maneira algo insólita e imprevista a notícia de sua performance juvenil como ator de teatro.

Embora sejam escassos os registros documentais a respeito de Herzog ator, não faltam testemunhos de que isso tenha acontecido. Podemos começar com o relato de Luiz Weis. Em Vlado, retrato de um homem e de uma época, Weis afirma que os grandes interesses de juventude de seu amigo eram o teatro, o cinema, a literatura e a música – “principalmente teatro, de preferência italiano”, enfatiza (p. 41). Informa, então, que Vlado frequentara um curso de teatro no Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, com o professor Edoardo Bizzarri, e teria escrito uma comédia inspirada no teatro do absurdo; intitulada O rei Berra, seu protagonista, apesar do nome, Berra, falava aos sussurros, enquanto a rainha Sussurra só berrava. O rastro termina aí, contudo. 

É Lélia Abramo, citada nesse mesmo depoimento de Luiz Weis, que preenche lacunas dessa história. Em suas memórias, a atriz conta como se formou o grupo de teatro amador “I Guitti” (“os mambembes, os saltimbancos”), do qual fez parte, e pede licença para recordar como Vlado Herzog passou a integrá-lo:

Certa noite, logo no início dos ensaios, surgiu um jovem magrinho, muito pálido, com grandes olhos luminosos e aparência adolescente. Quem o apresentou foi Beatriz Berg, que com ele participava das leituras dramáticas, dirigidas por Gianni Ratto, feitas em italiano pelos alunos do Instituto Ítalo-Brasileiro de São Paulo. O instituto era dirigido pelo professor Edoardo Bizzarri, e o seu Departamento de Teatro por Olga Navarro. Vlado gostava de teatro, falava corretamente italiano e queria participar do elenco. Contou que havia nascido na Iugoslávia e era bem pequeno quando seus pais, judeus iugoslavos, tinham sido forçados a fugir do país, que fora invadido pelos alemães. A família havia se refugiado na Itália, em casa de amigos, onde permanecera até o final da guerra, viajando então para o Brasil. Vlado foi aceito imediatamente, pois era o tipo físico perfeito que nos faltava para interpretar o papel de meu filho na peça. Ele foi ótimo no seu papel e nos tornamos grandes amigos. (ver Vida e arte: memórias de Lélia Abramo, de Lélia Abramo, p. 140).

Dessas lembranças surge ainda um dado precioso para a nossa reconstituição biográfica: Vladimir Herzog, o jovem magrinho e pálido, quando assume a função de ator teatral, adota um nome artístico, de verdadeiro sabor italiano: Aldo Erzi ou Vlado Erzi. O nome Vlado/Wlado/Aldo Erzi aparece em páginas de jornais da época em anúncios de quatro montagens de espetáculos entre os anos de 1955 e 1957, o que nos permite descobrir a presença de Vlado já no grupo primitivo do qual “I Guitti” se desdobrou, o “Muse Italiche”. Em outubro de 1955, as peças apresentadas são Il mondo non finisce all’angolo della strada, de G. D. Leoni, e Comissario di Notturna, de Ernesto Grassi, no Teatro São Paulo; em agosto de 1956, já com “I Guitti”, é a vez de Ispezione, de Ugo Betti, no Teatro Cultura Artística; e, em maio de 1957, noticia-se La bugiarda, de Diego Fabri, no Teatro São Paulo. Compunham o grupo Alberto Bonini, Angelo Valentini, Beatrice Romano (Beatriz Romano Tragtemberg, cujo nome artístico era Beatriz Berg), Carlo Zanchi, Ernesto Pettinati, Gigi Camporese, Lia Dogliani (nome artístico de Lélia Abramo), Luciano de Roma, Mario Leonardi, Mario Pirri, Pola Astri, Silvia Bruni, além de Vlado. Lívio Abramo colaborou como cenógrafo; Athos Abramo era o diretor.

Assim, a declaração da amiga Lélia e o nome artístico Erzi estampado em jornais constituem evidências suficientes dessa incursão herzoguiana nos meios teatrais. Para remate, fomos brindados com uma fotografia em que ele posa ao lado do cartaz da peça Ispezione, na frente do Teatro Cultura Artística. Vlado evita olhar para a câmera, mas podemos sentir a satisfação do jovem bem-sucedido na realização de uma vontade íntima. Registramos ainda no acervo uma carta e um cartão-postal enviados de Londres por Herzog a Lélia Abramo em 1965. É notável, na carta, o entusiasmo com que partilha sua descoberta de Brecht: assistira a uma encenação feita pelo Berliner Ensemble e conhecera Helene Weigel, viúva do dramaturgo.

Os ramais interrompidos de uma vida, ao contrário do que pode parecer, raramente são estéreis. A partir do contato com Lélia Abramo, Vlado é conduzido a Cláudio Abramo, chefe de redação de O Estado de S. Paulo, onde iniciará sua carreira jornalística (um relato alternativo, de Luiz Weis, dá conta de que quem o apresentou no Estadão foi seu professor de Filosofia, Mário Leônidas Casanova; provavelmente, Vlado se valeu de mais um caminho de indicação). Mais tarde, na BBC de Londres, ele atuará na adaptação de peças teatrais para o rádio. Entre alguns juízos alertando da personalidade menos expansiva de Vlado, o conhecimento dessa experiência teatral prévia vem finalmente explicar a desenvoltura com que ele desempenhou sua parte em Verdadeiro demais para ser bom, de Bernard Shaw, única gravação que restou do trabalho londrino de Vladimir Herzog. O interesse pelo teatro, em conformidade com sua concepção de comunicação e de responsabilidade social da arte, comparece também nos artigos publicados por esse intelectual autêntico.


ABRAMO, Lélia. Vida e arte: memórias de Lélia Abramo. Campinas, SP: Fundação Perseu Abramo; Ed. da Unicamp, 1997.

HERZOG, Clarice & MARKUN, Paulo (orgs.). Vlado: retrato da morte de um homem e de uma época. São Paulo: Brasiliense, 1985; São Paulo: Círculo do Livro, 1988.


FOTOGRAFIAS (1)

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[Vladimir Herzog posa ao lado de cartaz da peça 'Ispezione']

[Vladimir Herzog posa ao lado de cartaz da peça 'Ispezione']


MATÉRIAS JORNALÍSTICAS (7)

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Espetáculo em italiano no Teatro S. Paulo

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Espetáculo em italiano no Teatro S. Paulo

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4
Ribalta

Ribalta

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"Ispezione", amanhã no TCA

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"Ispezione"

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"La bugiarda" por "I Guitti"